Nuno Almeida

«Um Cadáver a Boiar na Ria»

1919 Porto

Entrada do diário do Dr. Alberto Souto, contendo o recorte de uma notícia publicada pel’O Povo de Aveiro, a 9 de fevereiro de 1919

Um Cadáver a Boiar na Ria

Na passada segunda-feira, dia 3 de fevereiro, foi encontrado um cadáver no canal central da ria de Aveiro, junto à Ponte dos Arcos.

O macabro descobrimento foi feito por um lavrador da terra, o Sr. António Macedo, enquanto navegava o canal na sua prática habitual da apanha do moliço. Este chamou de imediato a guarda, que rapidamente procedeu à remoção do defunto. Segundo alguns populares que assistiram ao acontecimento, o corpo pertenceria a um homem adulto, mas cuja idade seria difícil de determinar pelo inchaço das feições. Falou-se entre os mais entendidos, habituados a ver animais apodrecer nas águas dos canais, que estaria morto há pelo menos uma semana.

Nenhuma causa de morte foi avançada, tanto mais difícil de descobrir devido ao mau estado geral das suas roupas e carnes, pelo que poderá tratar-se de um simples bêbedo que tenha caído à água durante as suas deambulações vínicas, pelo que para já não tem o povo qualquer motivo para temer sair à rua.

Aguardemos pelo relatório do médico-cirurgião, esperando que este nos elucide acerca da identidade do falecido e o que provocou o seu antecipado fim.

Disse ainda o capitão geral da guarda que em um dos bolsos do seu casaco estava guardado um documento, protegido entre camadas de oleado, e que, por esse motivo, se acredita ter sido valioso para o dono. Por este conter uma mensagem aparentemente sem nexo, aqui a reproduzimos na esperança de que algum estimado leitor consiga retirar dela sentido, e que o seu conteúdo forneça alguma pista para identificar o falecido:

P WJOIP F´ B DIBWF. UNJHMGBDL

O Povo de Aveiro, 9 de fevereiro, 1919

***

Curioso.

O apóstrofo junto ao F faz lembrar um acento agudo. Estando esta letra, pela ordem alfabética, junto a uma vogal, faz-me crer que se trata de uma simples cifra de deslocamento. Basta substituir cada letra pela anterior, e

P WJOIP F´ B DIBWF

torna-se

O VINHO E´ A CHAVE

Vinho.

Da Bairrada? Do Dão? Do Porto?

Malditos monárquicos, a infiltrar espiões na nossa cidade.

Resta uma palavra.

Que dizer de UNJHMGBDL?

Esta ilude-me.

Utilizando a mesma cifra obtemos

TMIGLFACK

Se em vez de uma letra saltarmos duas, obtemos

SLHFKEZBJ

E se, em vez de recuar, avançarmos?

VOKINHCEM

Talvez.

À primeira vista parece apenas mais um conjunto de letras sem sentido, mas um olhar mais atento revela uma estrutura, uma lógica para o encaixe de vogais e consoantes que lembra uma palavra real.

Talvez invertendo as letras?

MECHNIKOV

Voilà! Finalmente, algo que se assemelha a uma palavra. Talvez de um qualquer idioma eslavo. Mas a que se refere? Ou a quem? Algum soviete? Que terá ele que ver com o resto da frase?

Como de costume, resolver um enigma apenas nos conduz a outro mais complexo. Paciência, nem por isso deixará de ser solucionado. Não poderemos permitir o regresso do obscurantismo. Da monarquia. Essa palavra maldita. Enviarei hoje mesmo uma missiva para a Loja de Águeda, enquanto essa vila ainda é livre, esperando que a façam chegar ao Grão-Mestre.

Com o conhecimento venceremos a ignorância. Com a luz da Ordem venceremos as trevas.

Alberto Souto

Diário. 9 de fevereiro, 1919

Arquivo Digital do Agrupamento de Escolas José Estevão
Inspirado em eventos ou pessoas reais
Referências

https://pt.wikipedia.org/wiki/Alberto_Souto

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