Inês Montenegro

«Testemunho de um Desertor Republicano»

1920 Porto

«Testemunho de um Desertor Republicano» – Relatório elaborado pela Repartição após recolha de vários testemunhos orais

Levou a reconquista de Albergaria-a-Velha a que não poucos soldados republicanos se desbaratassem e se perdessem por essas terras fora. Teve um deles a sorte – assim o pensou ele e toda a população – de dar com a casa do Soldado Milhões, território neutro e onde se julgou a salvo. Acolhido pelo bom coração dos que nele viam um rapaz trémulo em vez do inimigo, teve as feridas limpas e desinfetadas, o estômago cheio com o que de pouco havia, e um copito de tinto para arrebitar. Ainda de mãos a tremer e golfadas no falar, partilhou com os seus anfitriões o que vira em batalha: «O que andam a fazer, não sei dizer», declarou. «Mas que têm do vosso lado quem não morra, isso é certo.» Ante a descrença de quem o ouvia, insistiu: «Acertei um tiro na testa de um e esfaqueei outro pelo pescoço. As feridas ficaram, vi até sangue a jorrar da garganta, mas que aqueles homens continuaram em pé e a lutar, garanto que sim! Foi ao ver isso que não me aguentai mais. Como matar quem não morre? Como vencer sem matar?» Benzeu-se. «Não é de Deus, e por isso me fui, por mais desonrosa que seja a fuga, e por isso aqui me tendes.»

Apesar da estranheza, nem os anfitriões, nem os curiosos que por ali tinham aparecido insistiram na questão, esperando que uma noite de descanso acalmasse o jovem republicano, e o dia seguinte lhe alumiasse melhor os factos. Tal, contudo, não foi possível, uma vez que, como tem vindo a acontecer com demasiada frequência, o dia amanheceu com o corpo do rapaz fora do colchão de palha que lhe tinham destinado: encontraram-no no exterior, já com a rigidez da morte, e um papelito preso à camisa, onde se viam desenhados uma metralhadora e um arame farpado.

Após averiguações entre a população, nenhum suspeito foi encontrado ou detido.

@InêsMontenegro, from «Beige Minimalist Motivational Quote Poster», @HelenTorreggiani
Referências

«O Irmão Esquecido», AMP Rodriguez

«Vinum Liminus Mortis», Pedro Lucas Martins

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