Ana C. Reis

Fermentador 45

1919 Porto

Relato de um dos ataques registados ao trabalho de Ilya Mechnikov e Maria Rui da Rocha, provavelmente orquestrado pela República do Sul.

Um convite para chá salvou-a da morte numa manhã cinzenta de março.

Lurdes preparara uma generosa fornada de queijadas. O aroma divinal, aliado ao fustigar da chuva nas janelas altas do Instituto Pasteur, persuadira Maria a largar os fermentadores por umas horas.

O seu «gabinete», como Lurdes lhe chamava, era pouco mais do que um armário de vassouras, com prateleiras atulhadas de livros e uma mesa capaz de acomodar um bule e duas chávenas de porcelana, decoradas com motivos florais, que lembravam Maria dos longos e aconchegantes invernos de Trás-os-Montes.

Maria agarrou a chávena com ambas as mãos. O frio do Porto tinha o familiar dom de entranhar-se pela carne e aninhar-se nos ossos com uma ganância que apenas a água quente parecia espantar. Os dedos formigaram-lhe ao primeiro gole. Recostou-se na precária cadeira de madeira e, por um instante, fechou os olhos, deixando-se relaxar.

E então começaram os gritos.

O choque trespassou-a. Antes que pudesse pensar, já os pés se moviam impelidos pelo pavor de perder todo o progresso que ela e Ilya haviam conquistado.

No corredor foi brindada por um coro de tosse e asfixia. Os colegas, que tão secamente a tinham acolhido, contorciam-se no chão, atacados por um inimigo invisível. Determinada a atravessar a distância que a separava do laboratório, mergulhou em direção ao caos.

— Espere! — gritou Lurdes, parando-a com uma mão no ombro.

Maria sacudiu-a, desesperada, mas os pés traíram-na, tomados por uma leveza súbita. Quando percebeu o que se passava, já era tarde demais. Lurdes, a sua assistente e dama de companhia, a única alma em quem confiava naquele Instituto, envolvia-a num abraço sufocante, arrastando-a para longe dos gritos.

— Larga-me­­!

O fechar abrupto da porta acordou-a para a realidade. Estavam de volta ao gabinete; Lurdes forçara-a a sentar-se. Antes que Maria pudesse levantar-se, já algo lhe caíra nas mãos. Levantou o trapo enquanto a assistente se apressava a abrir as janelas. Após uma inspeção mais cuidada, Maria percebeu o que segurava.

— Máscaras de gás? — perguntou, confusa.

Lurdes anuiu, já a ajustar a sua. A cara de lua cheia e expressão serena desapareceu, engolida por um monstro de olhos esbugalhados e focinho grotesco. Maria precisou de respirar fundo para não gritar.

— O Senhor Mechnikoff encarregou-me de protegê-la — disse Lurdes. — Se quer mesmo salvar os fermentadores, tem de confiar em mim.

O corredor caíra num silêncio sepulcral.

O inimigo invisível varrera o Instituto, deixando atrás de si um rasto de pânico e destruição. Para alívio de Maria, os investigadores pareciam ter escapado. Restava apenas vidros estilhados e um trilho de artigos científicos e de cadernos abandonados pelo chão. Apesar da calma aparente, ela e Lurdes avançaram lentamente, mãos cerradas em punhos, olhares vigilantes.

A poucos passos do laboratório, um riso mudo percorreu Maria como um calafrio. Que utilidade teriam os seus punhos se o culpado lhe aparecesse pela frente? O que lhe tinham valido os anos de trabalho à bancada, além de destreza e calos nos dedos?

Voltou a si quando Lurdes a agarrou pelos ombros. Mas em vez de conforto, Maria viu o seu próprio pânico, distorcido pelas lentes da máscara. Abanou a cabeça, espantando os fantasmas que se tinham colado à pele; agarrou as mãos da assistente e atravessou o umbral da porta.

Juntas, entraram no laboratório que construíra com Ilya, uma caverna de teto alto, permeada pelo doce cheiro a mosto.

Para surpresa de Maria, o laboratório permanecia como o deixara naquela manhã. As prateleiras, repletas de placas de ágar e frascos com meios de cultura, rodeavam o chilreante exército de fermentadores.

Com um aceno rápido, indicou a Lurdes os tubos de vidro e o algodão esterilizado. Começaria pelos fermentadores suplementados com alta concentração de etanol, parte da estratégia de Ilya para selecionar apenas as leveduras mais resistentes.

Dirigiu-se ao fermentador 45 e estacou. Talvez fosse culpa das lentes que lhe turvavam a visão, mas algo lhe parecia… diferente. Uma turbidez tímida, quase impercetível, ondulava no líquido. Tinha a certeza de que não estivera lá naquela manhã.

Por um instante, tudo desapareceu: o gás, os gritos, a ameaça que ainda pairava no ar. Assobiou baixinho, maravilhada. Com as mãos a tremer, ligou o bico de Bunsen, deslizou uma pipeta de vidro para dentro do fermentador e iniciou a recolha. O mundo resumia-se agora àquele instante e à promessa de algo verdadeiramente novo.

Talvez por isso não se tenha dado conta de que Lurdes já não estava ao seu lado.

Uma dor aguda implodiu-lhe na têmpora esquerda. Cambaleou, lutando para não tombar sobre o fermentador.

Quando retomou os sentidos, um vulto de negro inclinava-se sobre si. As mãos, duras como grilhetas, apertavam-lhe a garganta. Maria agarrou-lhe os punhos, tentando gritar, mas os sons saíram mudos.

Num recanto remoto da sua mente, algo que o seu avô lhe ensinara regressou em fragmentos. Maria plantou os pés no chão e empurrou os quadris com força. O vulto desestabilizou-se e o aperto afrouxou. Maria pôde pensar com alguma clareza. Aproveitou a distração momentânea para procurar algo que pudesse usar: tateou ao seu redor, até os dedos encontrarem o vidro frio da pipeta. Sem pensar, dirigiu-a aos olhos do atacante.

Ele agarrou a pipeta, estilhaçando-a. Com um grunhido mudo, agarrou Maria pelo pescoço e foi como se um garrote a asfixiasse. Pensou em Ilya, em Trás-os-Montes, em todos os invernos brancos que perderia.

Uma faísca agitou a neblina em que a sua mente se tinha tornado. O cheiro a mosto misturado com etanol infiltrou-se no ar. A leveza apanhou-a de surpresa, quando uma Lurdes cambaleante empurrou o intruso contra o fermentador 45, usando um trapo em chamas. Maria fechou os olhos contra o enxame de chamas e vidros que se seguiu.

Quando os gritos cessaram, restou o ruído delicado dum tubo de vidro intacto, rebolando pelo chão.

@Inês Montenegro «Laboratório Ferreira da Silva - MHNC-UP»
Referências

RODRIGUEZ, AMP (2019). «As Mulheres na Monarquia do Norte». In RODRIGUEZ, AMP (Org.), Winepunk: Ano 1 (pp. 226-233). Divergência.

Documentação
Imprimir

Comentários