João Ventura

A Vidente

1921 Porto

A mansão onde Madame Arminda, cartomante e vidente, vivia e atendia os seus clientes, sempre por marcação, ficava numa das ruas elegantes da Invicta. Coches e automóveis paravam à sua porta e deles saíam ora uma dama com as feições escondidas por um véu negro, ora um militar de alta patente, ora um burguês de cartola, luvas e bengala. Dizia-se que até membros da família real recorriam aos serviços de Madame Arminda, e havia quem assegurasse que já tinha visto lá entrar membros do clero.

Mas não tinha sido sempre assim. Muitos anos antes, a sua residência era um casebre escuro e fumarento nos arredores do Porto; Madame era conhecida como «Ti’Arminda» ou «a bruxa», e prestava pequenos serviços à vizinhança, ao nível de curar do mau olhado ou deitar cartas para descobrir infidelidades conjugais. Devido ao reconhecimento do seu trabalho, tinha subido, passo a passo, o elevador social até onde hoje se encontrava.

As questões pelas quais era agora procurada também tinham subido de importância: fraudes que a polícia não conseguia resolver, suspeitas de adultério, herdeiros desavindos e, naturalmente, previsões sobre o desfecho da guerra que se eternizava entre a Monarquia e a República. A exatidão das previsões de Madame Arminda suscitou o interesse da Repartição. Assegurar os serviços da vidente em exclusivo para a Causa teria uma importância fulcral para o desenrolar da guerra. E, numa reunião da cúpula da Repartição, foi decidido proceder ao rapto de Madame Arminda, que seria alojada em local seguro. Desta tarefa foi incumbido o inspetor Florêncio Raposo, o funcionário mais conceituado da Repartição.

Dois dias mais tarde, já noite avançada, uma viatura parou junto à mansão da vidente, e dela saiu o inspetor Raposo. Bateu com os nós dos dedos na porta, que se abriu silenciosamente para o deixar entrar e foi fechada de seguida.

Mas também a República tinha interesse em assegurar a colaboração de Madame Arminda. Nesse mesmo dia, um agente da Polícia Preventiva, a atuar clandestinamente no Porto, designado pela Repartição como «Sombra», conseguiu, com a cumplicidade de um dos criados, entrar na mansão e esconder-se na cozinha.

Por coincidência, no momento exato em que o inspetor Raposo, acabado de entrar, se dirigia à escada que dava acesso ao piso superior, o Sombra saiu do seu esconderijo. Os dois inimigos viram-se frente a frente, e ambos reagiram. O agente republicano atirou na direção do inspetor uma faca, que lhe entrou no lado esquerdo do peito, seccionando-lhe a aorta: o inspetor Raposo conseguiu, contudo, disparar uma pistola cujo projétil atingiu o crânio do Sombra.

Quando a Polícia Municipal, chamada pelos vizinhos alertados pelo tiro, chegou ao local, encontrou os dois cadáveres e alguns serviçais assustados, mas nem sinal de Madame Arminda. O facto de não haver sinais de uma fuga precipitada levou a concluir que ela teria preparado com tempo o seu desaparecimento. Os corpos foram mais tarde removidos para o Instituto de Medicina Legal, e não foi possível localizar a vidente na cidade do Porto.

Alguns meses mais tarde, um informador da Repartição enviou um relatório onde anunciava ter avistado na aldeia de Montesinho uma mulher que, embora pobremente vestida, como todas as locais, tinha parecenças com Madame Arminda. No entanto, quando uma semana depois tornou a passar por lá, já não a viu, e às suas perguntas os habitantes deram respostas evasivas, afirmando não conhecerem tal mulher.

Nunca mais houve notícia de Madame Arminda.

@ContentPixie (https://unsplash.com/pt-br/fotografias/anel-de-prata-na-caixa-de-madeira-marrom-pg5WcWCUfuw)
Referências

Baseado no Universo Winepunk. /Inspired by the Winepunk Universe.

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