Inês Montenegro

Carta de um Soldado à sua Prometida, a 14 de Junho de 1919

1919 Porto

14 de junho, 1919

Querida Alzira,

Não há dia em que não pense em ti. Não sei escrever, como bem sabes, mas pedi a um companheiro de luta que pusesse em papel o que lhe dito. Terás, sem dúvida, quem te leia esta carta. Como sabes, fui destacado para a Linha do Vouga, em [rasurado]. Temos conseguido rechaçar as ofensivas republicanas, com a obra e graça de Deus Nosso Senhor, sem dúvida demonstrando ser justa a nossa causa. Muito se deve, admito, às ordens do russo (ou francês? Nem sei bem) que Sua Majestade, El-Rei D. Manuel II, trouxe consigo. Estranhei, ao início, este estrangeiro. Que interesses poderia ter? Que vantagens tem a tirar? Ainda não entendi, mas não posso negar que tem sido uma contribuição de peso para as nossas linhas de defesa. Somamos vitórias, e correm rumores entre os homens que os assaltos falhados das tropas republicanas levaram a um motim. Melhor para nós, que se matem entre eles.

Infelizmente, nem tudo são boas notícias. As condições das trincheiras [rasurado]. Não desejo preocupar-te, meu amor, com imagens que te tragam angústia, mas lama e destroços tornam a farda de um homem [rasurado], e as botas que nos enviam raramente [rasurado]. O armamento [rasurado], e pelo menos temos isso.

Também aqui chegou a Doença, esse inimigo desleal, que leva mais [rasurado] do que os republicanos conseguem. De Espanha nunca nada vem de bom!

Guardo junto do coração o lenço que me bordaste, e, ainda que sujo, é o bem mais imaculado que comigo tenho. Sonho com o dia em que regressarei para nos tornarmos marido e mulher aos olhos de Nosso Senhor e dos nossos.

Para sempre teu,

Faustino

Documento cedido pelos descendentes de Alzira e Faustino Faial ao Arquivo Distrital do Porto. Acredita-se que o estrangeiro franco-russo a que se refere seja Mechnikov, o biólogo microbiologista responsável pelo desenvolvimento do biocombustível a partir da uva duriense. A «Doença» tratar-se-á da segunda vaga da epidemia de gripe espanhola, que afetou o Porto e, a partir da cidade, se alastrou às tropas rasas. A presença de rasuras no documento indica a existência de uma censura, com vista a eliminar quaisquer informações que poderiam beneficiar as tropas republicanas, em caso de interceção.

Comentários