Lote #303
Extrato do edital do Leilão de 5 de outubro de 1923 que tomou lugar no salão nobre da Sociedade de Geografia, em Lisboa, que levou a hasta pública a coleção de artefactos ligados à contrarrevolução monárquica de 1919
Lote #303
Piano
Harmonium-Handlung, fabricado por José de Mello Abreu com casa no número 25 da Rua do Cancella Velha, Porto.
Espécime em madeira de pinho da Suécia, na tampa harmônica e as teclas, mogno, no corpo e as pernas. Possui um machimismo, adaptado após data de construção, de invenção das oficinas José Delerue (10, Campo da Regeneração), que permite por meio de um pequeno motor de combustão a éter etílico que o instrumento produza música autonomamente sem necessitar de nenhum instrumentista. O machismismo tem no seu interior um cilindro de puas removível que permite tocar o Hino da Carta.
Estado de conservação médio, verniz oxidado e manchas do que se presume ser salpicos de sangue entranhados na madeira. O piano emana um leve cheiro a Água Fúnebre.
Este piano (o qual consiste a totalidade do Lote #303) foi infamemente tocado por Esmeralda Vilar no Éden-Teatro, no período em que lá foram presos diversos resistentes republicanos, para abafar os gritos destes enquanto eram torturados por informação ou malícia.
Nesta prisão improvisada, que funcionou por meio ano antes da recondução dos prisioneiros para o Aljube (oficiais do exército) e Casa de Reclusão (restantes prisioneiros políticos), os prisioneiros eram mantidos na escuridão debaixo do palco onde, entre as frestas das tábuas de madeira, o sangue dos açoitados pingava como chuva.
Dos camarotes, alguns dos presos eram obrigados a assistir à tortura dos seus colegas, de modo que os seus espíritos quebrassem antes que os seus corpos o fossem.
Diz-nos Campos Lima: «Constava que lá dentro do Éden-Teatro, por troças, se tosavam os presos ao som do Hino da Carta tocado num piano que os trauliteiros lá haviam encontrado. Por vezes, em gesto magnânimo, era-lhes concedido escolherem a música ao som da qual deveriam ser desancados.»
Já Rocha Martins contrapõe: «Esmeralda Vilar não podia proceder assim porque até…nem sabia tocar piano!»; porém a existência do machimismo contrapõe esta tese.
A Repartição tem nos seus registos a ocorrência de visitas frequentes de Isabel Mendonça Travassos, levando barricas de Água Fúnebre, que permitia encurtar o recobro, entre sessões de espancamento, dos republicanos mais resistentes a dizer o que os realistas queriam ouvir; trazendo, à volta, carros com matéria-prima para a produção do vinum liminis mortis.
Pelo seu caráter único e valor histórico incalculável, o Lote #303 tem uma licitação base de 8 000$00.
«Vinum Liminis Mortis», Pedro Lucas Martins (Vinum Liminis Mortis – HYP)
Monarquia do Norte – 1919, de Helena Moreira da Silva
Ilustração Portuguesa de N.º 680 3 de Mar.
https://www.youtube.com/watch?v=ugg19mpgbkw
https://www.lieveverbeeck.eu/Pianos_portugueses.htm
Inquérito Industrial de 1881 – Visita às Fábricas da Comissão Diretora do Inquérito Industrial
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