AMP Rodriguez

O Irmão Esquecido

1918, 1919, 1921 Porto

Um dos mistérios que ensombrou a Monarquia do Norte durante a Guerra das Pipas, dando origem a um mito rural, foi o Irmão Esquecido.  Quando em 1918 acontece a Batalha de LaLys, o Corpo Expedicionário Português sofre baixas duras, entre mortos, feridos, prisioneiros e desaparecidos. Emergem igualmente heróis, como o Soldado Milhões, o qual enfrentou sozinho, na trincheira, as colunas alemãs, permitindo a retirada segura de portugueses e ingleses.

O Soldado Milhões, Aníbal Augusto Milhais, que ganha a alcunha no elogio que lhe é feito ao retornar a acampamento português, encontrava-se tranquilo na sua casa em Murça quando a guerra entre a Monarquia do Norte e a República de Lisboa começa. O respeito imenso que ambas as partes do conflito têm pelo herói da Grande Guerra faz com que seja assinado um acordo a 10 setembro de 1919, o qual estabelecia que a partir da casa do Soldado Milhões, e num raio de um quilómetro em torno dela, fosse considerada uma No Man’s Land portuguesa no conflito vínico. Na prática, era um micro-país neutro, ou uma embaixada informal, se assim o quisermos, onde muitas vezes feridos e refugiados de renome procuravam apoio, enquanto se escapavam ou para um lado ou para outro.

Este acordo, e o estatuto do Soldado Milhões, provocou azia e aziagos entre vizinhos e parentela, embora em surdina. A inveja é a herança mais perene e reclamada no território humano. E devagar, mas com passo seguro, começaram a surgir incidentes na orla da fronteira entre as terras de conflito e a casa de Milhões. No início, eram coisas tão simples que só uma avaliação posterior permitiu identificar tratar-se do princípio de um pesadelo: pequenos brinquedos largados, algumas peças de roupa, calçado, sobretudo, largados e sempre num estado decadente. Mas numa época caótica e confusa, como são as épocas de conflito, podiam ser apenas os pedaços de vida e bens atirados para trás, como se tal impulsionasse os seus donos para o futuro: um qualquer, desde que bem longe do presente. Por isso, não se estranhou algum estrago nesses objetos. Mesmo as primeiras manchas de sangue nas bonecas estropiadas ou sapatos semi-inteiros não deram alarde de maior. Estava-se em guerra.

Talvez por isso o choque foi maior quando apareceram os recadinhos em pedaços de papel pregados grosseiramente nos brinquedos e roupas. E, neles, apenas um desenho, de uma metralhadora e arame farpado. Aí, começou-se a inventariar pessoas, onde estavam, se perdidas ou refugiadas, e os saldos preocupantes começaram a surgir com a identificação de que, além de vítimas da guerra, da fome, do acaso, tinham-se vítimas de crime e morte.

Não demorou a ser lembrado por outros sobreviventes do Corpo Expedicionário Português onde já fora visto aquele desenho. Um dos soldados ingleses tinha partilhado a história, enquanto aguardavam em acampamento comum a ordem de retorno aos respetivos países.

«You know, vocês, portugueses, têm dois soldados de lenda, o Milhões, por ter salvo tantos, e o Zeros, que tudo destruiu, ao atingir fatalmente o inimigo e o seu pelotão. Em desespero, jogou-se nos arames e foi metralhado no dia seguinte pelos reforços de tal maneira que nada sobrou. E aconteceu ao mesmo tempo que o Milhões salvava tantos. Na semana seguinte, começaram a aparecer mortos no encalço da rota de fuga do vosso Corpo Expedicionário, mortos que não eram de guerra, como se determinou. E neles sempre o papel com esse desenho.»

O inglês abanara a cabeça e rematara: «A amargura e a inveja fazem a morte em vida, e a vida na morte. O fantasma do Zeros não perdoa ao Milhões que ele seja muito pouco para o muito dele.  Não há de parar de vos seguir, não há de parar de matar!»

«Casa do Soldado Milhões», website oficial da Câmara Municipal de Murça
Inspirado em eventos ou pessoas reais
Referências

Entrada original da cronologia winepunk:

1918:

Abril, 9-10 – Batalha de LaLys, onde o Corpo Expedicionário Português sofre pesadas baixas.

https://invictaimaginaria.blogspot.com/2013/05/

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