O Irmão Esquecido
Um dos mistérios que ensombrou a Monarquia do Norte durante a Guerra das Pipas, dando origem a um mito rural, foi o Irmão Esquecido. Quando em 1918 acontece a Batalha de LaLys, o Corpo Expedicionário Português sofre baixas duras, entre mortos, feridos, prisioneiros e desaparecidos. Emergem igualmente heróis, como o Soldado Milhões, o qual enfrentou sozinho, na trincheira, as colunas alemãs, permitindo a retirada segura de portugueses e ingleses.
O Soldado Milhões, Aníbal Augusto Milhais, que ganha a alcunha no elogio que lhe é feito ao retornar a acampamento português, encontrava-se tranquilo na sua casa em Murça quando a guerra entre a Monarquia do Norte e a República de Lisboa começa. O respeito imenso que ambas as partes do conflito têm pelo herói da Grande Guerra faz com que seja assinado um acordo a 10 setembro de 1919, o qual estabelecia que a partir da casa do Soldado Milhões, e num raio de um quilómetro em torno dela, fosse considerada uma No Man’s Land portuguesa no conflito vínico. Na prática, era um micro-país neutro, ou uma embaixada informal, se assim o quisermos, onde muitas vezes feridos e refugiados de renome procuravam apoio, enquanto se escapavam ou para um lado ou para outro.
Este acordo, e o estatuto do Soldado Milhões, provocou azia e aziagos entre vizinhos e parentela, embora em surdina. A inveja é a herança mais perene e reclamada no território humano. E devagar, mas com passo seguro, começaram a surgir incidentes na orla da fronteira entre as terras de conflito e a casa de Milhões. No início, eram coisas tão simples que só uma avaliação posterior permitiu identificar tratar-se do princípio de um pesadelo: pequenos brinquedos largados, algumas peças de roupa, calçado, sobretudo, largados e sempre num estado decadente. Mas numa época caótica e confusa, como são as épocas de conflito, podiam ser apenas os pedaços de vida e bens atirados para trás, como se tal impulsionasse os seus donos para o futuro: um qualquer, desde que bem longe do presente. Por isso, não se estranhou algum estrago nesses objetos. Mesmo as primeiras manchas de sangue nas bonecas estropiadas ou sapatos semi-inteiros não deram alarde de maior. Estava-se em guerra.
Talvez por isso o choque foi maior quando apareceram os recadinhos em pedaços de papel pregados grosseiramente nos brinquedos e roupas. E, neles, apenas um desenho, de uma metralhadora e arame farpado. Aí, começou-se a inventariar pessoas, onde estavam, se perdidas ou refugiadas, e os saldos preocupantes começaram a surgir com a identificação de que, além de vítimas da guerra, da fome, do acaso, tinham-se vítimas de crime e morte.
Não demorou a ser lembrado por outros sobreviventes do Corpo Expedicionário Português onde já fora visto aquele desenho. Um dos soldados ingleses tinha partilhado a história, enquanto aguardavam em acampamento comum a ordem de retorno aos respetivos países.
«You know, vocês, portugueses, têm dois soldados de lenda, o Milhões, por ter salvo tantos, e o Zeros, que tudo destruiu, ao atingir fatalmente o inimigo e o seu pelotão. Em desespero, jogou-se nos arames e foi metralhado no dia seguinte pelos reforços de tal maneira que nada sobrou. E aconteceu ao mesmo tempo que o Milhões salvava tantos. Na semana seguinte, começaram a aparecer mortos no encalço da rota de fuga do vosso Corpo Expedicionário, mortos que não eram de guerra, como se determinou. E neles sempre o papel com esse desenho.»
O inglês abanara a cabeça e rematara: «A amargura e a inveja fazem a morte em vida, e a vida na morte. O fantasma do Zeros não perdoa ao Milhões que ele seja muito pouco para o muito dele. Não há de parar de vos seguir, não há de parar de matar!»
Entrada original da cronologia winepunk:
1918:
Abril, 9-10 – Batalha de LaLys, onde o Corpo Expedicionário Português sofre pesadas baixas.
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