O Regresso de D. Antónia
É nas alturas de crise, como aquela que passamos, provocada pelas ações vis dos republicanos de Lisboa, que o coração dos fiéis mais se agiganta e se eleva aos Céus. Para compreendermos a procissão que hoje juntou, espontaneamente, mais de dez mil pessoas, temos de recuar cinco meses, para a humilde casa do caseiro da Quinta Dona Augusta, da Casa Sandeman.
Chovia a rodos e o vento abanava o telhado sob o qual Manuel Silva se reunia à hora do jantar com a sua família. No centro da mesa, nem pão, nem sopa, mas apenas as raízes ressequidas de um pé de vinha plantado há menos de um ano. De repente, pela porta escancarada por uma possante nortada inesperada, entrevê-se uma silhueta de vestido longo, recortada entre a chuva e a luz intermitente dos relâmpagos que tinham começado a cair. Nas mãos, a figura de negro trazia uma alcofa, que despejou sobre a mesa, cobrindo-a de iguarias sem fim. Movidos pelo temor, logo ali Manuel e a sua família se prostraram no chão, agradecendo de mãos elevadas ao Alto a ajuda que haviam recebido. A mais pequena da família, afoita e curiosa como se quer das crianças da Coroa, ousou levantar o olhar para o rosto da benfeitora, reconhecendo os seus traços de uma das gravuras dos «Heróis da Nação». Quando a figura de negro abandonou a casa, um nome escapou dos lábios da petiz: Dona Antónia Ferreira.
Nessa noite, outras três famílias testemunharam a aparição da senhora do Douro nas suas casas, trazendo víveres para os confortar. Nas noites seguintes, quatro dezenas de famílias avistaram a Ferreirinha a vaguear pelos vinhedos. De lembrar que, se Dona Antónia estivesse viva, teria agora 109 anos.
Porém, a maior aparição deu-se aquando da reunião da Real Comissão Nacional Vinhateira. A ordem de trabalho estendia-se já para lá do sol-posto quando, para surpresa de todos, Dona Antónia fez-se anunciar e ocupou a sua cadeira dileta, dirigindo a ordem de trabalhos e propondo um plano de ação salvador. Em vez de excertos em vinha americana, propôs que uma nova variedade fosse usada, a vinha de Santiago do Douro, uma planta de propriedades maravilhosas encontrada por um peregrino dos caminhos de Compostela, que ao escorregar numa escarpa e caindo em direção às águas do Couro, se apoiou no pé da planta salvadora. Após contar a história, Dona Antónia levantou-se e abandonou a sala, para nunca mais ser vista. Quando a Real Comissão contactou os herdeiros da Ferreirinha, eles não só confirmaram a história, como informaram que, por ordens deixadas no testamento, tinham já uma plantação de vinha de Santiago do Douro pronta para enxerto.
Depressa a planta milagreira provou o seu étimo, salvando centenas de plantações em perigo, duplicando ainda a produção. Ao sinal das primeiras melhorias, organizaram-se missas e terços em honra da que agora chamam Beata Ferreirinha. El Rei já fez chegar ao Vaticano os relatos e as provas dos acontecimentos que estão nas bocas e corações do povo do Norte.
Não é, portanto, de estranhar que, em vez da tradicional Nossa Senhora das Dores, tenha desfilado no andor uma santa vestida de negro com folhas de parreira aos pés, atraindo milhares de fiéis a uma procissão que costumava contar com apenas uma centena.
Deus opera milagres para aqueles que têm fé. Que esta seja uma lição para os republicanos anticlericais e ateus do Sul!
Antónia Ferreira – Wikipédia, a enciclopédia livre
Real Gazeta Invicta (publicada em 2013 pela Invicta Imaginaria para o Fórum Fantástico 2013)
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