O Silenciado
Testemunho da vida em exílio de um degradado da Monarquia do Norte em 1921.
— É um daqueles.
A voz tingida pelo tabaco corrói o ar assim que a ouve. Rouca. Grave. Inclina-se sobre o moribundo enquanto a mulher limpa as mãos ao avental e o observa. Os olhos sobre o aro metálico dos óculos.
— Tens a certeza? — pergunta, desconfiada. Não para de enrolar as mãos no tecido desbotado como um tique nervoso. Como se tivesse receio que se as libertasse o quisesse tocar. Um simples animal num jardim zoológico.
Encostado ao pilar, os olhos fixam os carris, as rodas hipnotizantes dos comboios que passam. Mesmo quando o piar estridente e sufocante da sua passagem o leva a querer desviar o olhar, num esforço hércule não o faz. Já que perdeu a voz, também não quer perder a visão.
E, no entanto, o casal continua à sua frente, a estragar-lhe o ponto fixo, a tentar desviar-lhe a atenção. Embasbacados como se estivessem perante um animal selvagem.
— Terá fome?
Fome? O pensamento fá-lo estremecer. Quer lançar uma gargalhada no ar, mas as linhas que o cosem recusam-na. Estorva de fome. Não come há dias. Há dias que os lábios selados o impedem de se alimentar. Embebeda-os, conspurcados, com água até as feridas o lacerarem de dor.
— E por onde é que lhe davas de comer, Maria? — O homem endireita-se. Coça o bigode farto, divertido. Aguarda que ela acabe a sua diligência de limpar as mãos gastas do trabalho do café no avental. — Então? Não me respondes? Também tens a boca cosida como a dele?
Maria para o gesto esquecido e enxota o ar em rejeição:
— Está calado, José António. Só dizes disparates. — Um esgar atravessa-lhe o rosto. — Estes coitados só se metem em trabalhos, não é?
— Hão de cair todos em desgraça. Ainda por cima, tentam fugir para aqui. Se ao menos ficassem quietinhos lá no Norte…
Maria debruça-se sobre a barriga e, com as mãos nas ancas, pede-lhe:
— Se tem fome, acene. — Não acena. O seu olhar continua pesado, inerte. Pousado nos carris à sua frente. Coimbra, diz a placa. Pensava que estaria a salvo, mas nada o salvaria depois de ser condenado ao degredo, pois não?
— Estou farto disto. — Zé António acende um cigarro. — Esta aberração não pode ficar aqui à frente do café. Vai espantar os passageiros todos!
— Mas o que lhe fizeram… — Maria abana a cabeça, consternada. No fundo, tem pena do homem. Que queiram brincar à política é uma coisa, outra é terminar assim, com os lábios cerrados por linhas grossas bem visíveis. As lacerações tão infetadas que cheira, à distância, um odor fortíssimo a pus. — Que trabalho mais mal feito. — Depois volta-se, decidida. — Vai lá dentro e traz-me a faca mais pequena.
— Tu estás tola, ó mulher. Se te apanham… — Zé António afasta-se um passo. — Olha, ainda te cosem a ti essa matraca. Só por traição. Mas se calhar faziam-me um favor.
— Ahhh! — atira Maria, e entra no café, as ancas bamboleantes de desprezo. Está vazio. Ainda são sete horas da manhã e o único passageiro é o monárquico de roupa andrajosa sentado no cimento frio da estação.
O homem volta-se para os carris. Desvia o olhar do miserável sentado no chão, de olhar mortiço para o horizonte. Já não consegue olhar mais para o rosto de dor. A boca fétida de uma atrocidade sem limites.
— Vocês só se metem em trabalhos, não é? Não sabem estar quietinhos? — Dá uma baforada. — Estamos tão bem assim e querem voltar ao mesmo? Ao mesmo estado de opressão? Olha, sempre ouvi dizer que Quem muda, Deus ajuda. Além disso — dá outra baforada —, vêm para aqui, lá de cima, a fugir do vosso destino…
— Para com esses devaneios e ajuda-me aqui. — A mulher volta, mas não é uma faca pequena que o miserável a vê a limpar ao avental sujo: é a faca do pão. A serra gasta pelo tempo. Enorme.
Zé António volta-se, irritado. Atira o cigarro para o chão com um piparote e calca-o. De seguida, em passos largos, entra no café sem sequer olhar para trás.
— Nem pensar, Maria. Cose tu o teu destino com essas linhas, que eu hoje já cortei muito pão.
Nesse momento, um som estridente surge na plataforma, mascarado pelo apito do próximo comboio que se aproxima.
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