Vinum Liminis Mortis
Salvo alguns historiadores e académicos mais aplicados, com acesso a arquivos esquecidos, desconhecidos ou vedados ao público geral, poucos saberiam reconhecer o nome de Isabel Mendonça Travassos.
Comecemos por relatar que foi a primeira laureada com a já extinta Ordem Real de Mérito e Excelência, numa cerimónia realizada no Porto, presidida por todos os títulos e altos cargos da Monarquia do Norte. Esta distinção foi de especial importância não apenas pelo galardão em si, mas pelo facto de ser o único caso conhecido, na história de Portugal e do mundo, em que uma mulher morta subiu a um palanque para ser condecorada.
O insólito acontecimento deu-se pela contribuição extraordinária desta investigadora e enóloga para o esforço de manutenção da zona monárquica do Norte, com recurso ao agora ilegal, e fortemente procurado, vinum liminis mortis — popularizado como «vinho dos mortos».
Será de notar que existem bebidas contemporâneas de semelhante denominação (porventura aproveitando o nome e a enorme procura deste vinho), mas que em nada se assemelham ao original. Nem no efeito nem no modo de produção, estando o primeiro subordinado ao segundo.
Como seria expectável, dado o secretismo do projeto, pouco se sabe sobre o exato processo de criação do autêntico vinho dos mortos, mas a já vasta investigação sobre o tema veio confirmar, pelo menos, duas etapas fundamentais.
A primeira, e de crucial importância, era o local da vinha. Não apenas um solo seco, solto e de boa drenagem, mas um onde a presença de cadaverina se encontrasse em níveis bastante elevados — certamente acima dos desejados em qualquer outra situação. Isto significava que as melhores terras para este cultivo teriam em si uma abundância de cadáveres, em diferentes estados de decomposição, com «reabastecimento» obrigatório. Um fluxo contínuo de espiões, pequenos criminosos e indesejáveis de toda a espécie providenciava às raízes das videiras fácil acesso a um copioso depósito de necrochorume. O resultado eram uvas negras, volumosas e luzidias — uma casta com propriedades únicas, capaz de operar transformações no foro físico e mental, depois de sujeitas a um misterioso e ainda não apurado tratamento, durante a fase de fermentação.
A segunda parte do processo refere-se também ao uso de cadáveres, mas como meio de armazenamento. Na fase de maturação, estes corpos eram eviscerados e drenados, sendo o vinho selado no seu interior, em odres próprios, a assegurar a conservação do conteúdo dionisíaco. É também digno de nota que os invólucros humanos podiam variar em género, idade e estrato social (nobres, clérigos ou plebeus), tendo sido encontrados exemplares de idosos, mulheres e até crianças, de abdómen oco e a exibir marcas de costuras manuais. Todos os recetáculos, presumivelmente, conferiam ao vinho um certo sabor ou aroma particular.
O resultado maior, contudo, e a razão para a sua grande demanda e celebração, era invariável. Meio litro apenas de vinho dos mortos tinha o imediato efeito de aplacar a doença (sendo a gripe espanhola o melhor exemplo) e de remeter à inconsequência qualquer ferimento de gravidade moderada. O consumo regular — atestado por testemunhos escritos — dava como garantido aos seus consumidores um estado próximo da imortalidade, tornando inócuo qualquer veneno, golpe cortante ou disparo de arma de fogo. O ferimento persistia, entenda-se, mas sem consequências de maior, à exceção, porventura, da questão estética — os hematomas, a necrose, a pele acinzentada que passou a associar-se aos seus utilizadores, por norma proeminentes figuras do reino, com coleções privadas e acesso irrestrito ao admirável elixir.
Facilmente se pode imaginar o que uma descoberta desta ordem terá significado para o esforço de guerra, ainda que os soldados e combatentes rasos em prol da Monarquia só tivessem acesso a uma versão aguada do vinho, a chamada «água fúnebre», uma variante empobrecida, mas com atributos curativos.
Ainda está por determinar por que processo esta substância altamente tóxica, em todas as suas vertentes, se faria própria para ingestão pontual ou sucessiva, embora não se possa dizer, à luz de vários relatos, que a mesma ingestão (ou libação) não se viesse a revelar danosa.
Os primeiros casos averiguados datam de quase um ano depois de Isabel Mendonça Travassos ter recebido a sua distinção. Diversos relatórios médicos, notícias impressas, descrições de autoridades policiais e judiciais mencionam casos de pessoas de aspeto cadavérico, vomitando uma matéria espessa e negra, algumas apresentando sintomas que iam do transe ao estupor, incapazes de raciocinar ou de viver em sociedade. Poucos são os que podem estar vivos para desfrutar da sua morte. A auspiciosa máxima antes difundida ganhava um sentido mais tenebroso.
Não se conhece com certeza o que poderá ter causado esta mudança, se o vinho puro ou um dos seus derivados, se o seu uso continuado ou abusivo, até porque nem todos os utilizadores terão experienciado tão gravosa sintomatologia. É sabido, ainda assim, que muitos dos que a exibiram foram rápida e discretamente afastados de circulação, muitas vezes de forma permanente, quando a situação se mostrava irreversível.
Supõe-se que as propriedades sedativas do vinho funcionassem igualmente como um antídoto para a dor. Qualquer que ela fosse. Percebe-se assim o enorme potencial aditivo desta substância — e a inclinação que poderia haver para o excesso ou para a obtenção de produtos menos fiáveis e regulamentados. Desta forma, nasce a hipótese do que poderá, no curto espaço de um ano, ter precipitado a queda da Monarquia do Norte.
Não é possível, à data, apurar quantos destes efeitos já seriam conhecidos — ou o que se poderia prever — na altura da cerimónia em que a criadora do vinho foi homenageada. O nome popular do vinho, porém, já o parecia vaticinar. Talvez ninguém quisesse ver para lá do assombroso espetáculo que pontuou a comemoração, onde um tal avanço enológico soava a vitória e a promessas de uma grandeza desmedida. Afinal, Isabel Mendonça Travassos subira ao palco de forma triunfante, horas após uma tentativa de assassinato bem-sucedida. Sabe-se que ainda discursou no evento, embora não se saiba o conteúdo. Presume-se, no entanto, que o buraco acima do seu sobrolho esquerdo terá dito tudo o que era preciso.
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