O Estranho Caso dos Suicídios na Repartição
No dia 14 de agosto de 1920, pelas 6:30, a funcionária de limpeza dos escritórios na sede da Repartição sofreu um enorme susto. Ao entrar no gabinete do inspetor Eliseu Torcato, deparou-se com ele pendurado pelo pescoço, a outra ponta da corda atada a uma viga do teto. Aos gritos da mulher acorreram os agentes que faziam o turno da noite, os quais confirmaram a morte e chamaram uma ambulância para transportar o corpo para o Instituto de Medicina Legal.
Na semana seguinte, um outro inspetor apareceu morto na banheira, em sua casa, tendo ao lado, no chão, um frasco de comprimidos vazio. Este segundo caso fez disparar sinais de alarme por toda a Repartição.
Mas não ficou por ali: mais uma semana e um agente de 1ª classe deu um tiro na cabeça com a arma de serviço, em plena via pública. Foi com grande esforço que a Repartição conseguiu abafar o caso. Passadas duas semanas, um agente estagiário atirou-se da Ponte D. Luís e, quando foi recolhido do rio, era já cadáver.
Algumas das intervenções no Conselho Superior da Repartição, convocado de emergência, quase atingiram o nível de pânico, mas a reunião terminou inconclusiva.
Tomé Silva era um agente de 2ª classe, recentemente admoestado pela chefia devido ao uso reiterado de métodos pouco ortodoxos no exercício do seu trabalho. Foi também recomendado, pelos instrutores do processo de averiguações, que fosse temporariamente colocado em serviço administrativo.
Desta forma, Tomé Silva encontrava-se a prestar serviço no Arquivo, passando-lhe pelas mãos os sucessivos relatórios produzidos sobre os casos de suicídio. E, não sendo o trabalho no Arquivo particularmente exigente, tinha tempo livre para começar a pensar sobre o assunto.
Foi ver inicialmente se haveria pontos comuns aos diversos suicídios, e descobriu que todos os falecidos tinham feito parte da equipa que investigara a morte do inspetor Eliseu Torcato. Foi ver em seguida o material existente no Depósito de Provas sobre o inspetor Eliseu. Para além do habitual – documentos, a arma de serviço, fotos de familiares –, encontrou um caderno de capa preta, preenchido com o que reconheceu ser a letra do inspetor. Deixou tudo no Depósito, exceto o caderno, que meteu ao bolso.
Nessa noite, no quarto arrendado onde habitava, Tomé tirou da mala, sempre fechada à chave, uma garrafa de vinho – a sua qualidade de agente da Repartição permitia-lhe obter alguns produtos difíceis de encontrar no mercado – e encheu um copo. Sentou-se na cama, procurando uma posição confortável, abriu o caderno e começou a ler.
À medida que ia passando as páginas, ia-se apercebendo que aquele caderno era uma bomba-relógio. O inspetor Torcato tinha reunido citações de autores – Paine, Rousseau, Voltaire, Marx, Zola, Victor Hugo, Robespierre –, todos ferozmente antimonárquicos, demonstrando de mil e uma maneiras que a existência de um rei, considerado superior a todos os outros cidadãos apenas por ser filho do rei, era uma aberração que não fazia sentido num mundo civilizado e esclarecido.
Eram duas horas da manhã quando Tomé Silva terminou a leitura (e metade da garrafa de vinho). E tinha uma teoria sobre os suicídios.
A pesquisa da literatura antimonárquica que o inspetor Eliseu Torcato fizera tinha abalado tão profundamente as suas convicções que o inspetor, até aí um fervoroso adepto da Causa, não viu outra solução que não fosse o suicídio. E as citações transcritas eram de tal forma convincentes que os três seguintes, depois de lerem o caderno, tinham sido conduzidos à mesma saída.
Mas Tomé Silva considerava-se um pragmático. Não é que não achasse alguma razão no que acabara de ler. Mas gostava do seu trabalho, e enquanto lhe pagassem o ordenado, ia manter-se assim. O futuro logo se veria, quando chegasse.
Dirigiu-se à cozinha – toda a casa dormia àquela hora – e verificou que o fogão de ferro fundido ainda mantinha algumas brasas na fornalha. Então foi arrancando uma a uma, metodicamente, as páginas do caderno, e lançou-as para cima das brasas, onde elas se enrolaram, enegreceram, e foram, por fim, consumidas em chamas.
Quando terminou, regressou ao quarto, tornou a fechar à chave a garrafa, e deitou-se, mergulhando quase imediatamente num sono sem sonhos.
E não houve mais suicídios na Repartição.

Baseado no Universo Winepunk. /Inspired by the Winepunk Universe.
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